Publicado por: guyveloso | 11 de agosto de 2010

Entrevista para Dominik Giusti – 29a. Bienal de SP

Jornal Diário do Pará. Quarta-feira, 23/06/2010

Paraense participa da 29ª Bienal de São Paulo 

Guy Veloso busca no ensejo de cada manifestação religiosa imagens que revelam a subjetiva relação do homem com o plano espiritual. Confirmado para a 29ª Bienal de São Paulo com a série “Penitentes”, ele conta que foi preciso ler três vezes o e-mail de convite para participação em um dos eventos de arte mais importantes da América Latina. A densa pesquisa sobre os grupos que mantêm até hoje a prática secular da penitência levou oito anos para que fosse considerada completa. Guy queria encontrar os penitentes em todas as cinco regiões brasileiras. Depois de quase uma década, feito alcançado. Na Semana Santa deste ano, ele foi até o último grupo, em Goiás. Foram 117, mas um não permitiu que o ritual fosse fotografado. As fotografias feitas com equipamento analógico, uma Leica com lente 35mm, são de inestimável valor antropológico. O fotógrafo conversou com o CADERNO VOCÊ sobre fotografia, fé, religiosidade e ainda contou como foi se aproximar de grupos e seitas secretas.

P: No começo, a fotografia era um hobby. Em que momento você sentiu que se tornaria fotógrafo e decidiu se profissionalizar?

R: Eu vou contar toda a história da fotografia na minha vida. O primeiro momento foi quando eu tinha 14 anos e fui na Galeria Ângelus, do Theatro da Paz, ver a exposição do Luiz Braga, chamada “À margem do Olhar”. E isso me encantou e mexeu comigo a ponto de eu ficar com essa ideia na cabeça, de um dia fotografar. Depois que eu me formei em Direito, eu fiz o Caminho de Santiago de Compostela. Fui para a Espanha fazer uma rota de peregrinação de 800 km a pé, que durou 37 dias e, nesse caminho, além de fotografá-lo inteiro, eu tive a oportunidade de pensar muito no que eu ia fazer pro resto da minha vida. Foi quando eu vi que o meu caminho seria pelas artes visuais, pela fotografia. Outro marco está sendo este ano. Fui convidado para fazer parte da Coleção Pirelli/Masp e, coincidentemente, embora eu não acredite em coincidências, quem mandou a recomendação para os curadores foi o próprio Luiz Braga, como as coisas se unem no final da história… E agora fui convidado pelos curadores Augusto dos Anjos e Agnaldo Farias para a 29ª Bienal de São Paulo, curiosamente com um trabalho documental, o que é muito raro.

P: O trabalho selecionado para a Bienal, “Penitentes”, é um recorte do seu trabalho sobre religiosidade. O que fez você escolher esse tema especificamente, a relação do homem com a religião?

R: Sou muito religioso. A busca espiritual na minha vida vem desde criança. Desde os meus 13 anos que eu leio muitos livros que passam pelo hinduísmo, esoterismo, espiritismo e isso acabou refletindo nas minhas fotos. Então, eu acho muito interessante essa busca no outro, nas pessoas. E eu gosto muito da cultura popular brasileira e aí acabo unindo uma coisa à outra. O meu assunto preferido para fotografar é a religiosidade popular brasileira. Tive a oportunidade de viajar muito nesses últimos dez anos, ir para várias romarias no Brasil, como em Juazeiro do Norte, Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e lá conheci seitas, grupos fechados de penitentes. São organizações laicas, fora da igreja católica, que durante a quaresma rezam pelas almas do purgatório. Eles saem nas ruas à noite, cobertos dos pés a cabeça com panos, às vezes usam máscaras, cantam benditos, fazem lamentos, visitam cemitérios… isso tudo pelas almas no purgatório. Em alguns casos extremos, eles praticam a autoflagelação. A série da bienal são justamente esses penitentes. São 116 grupos, dos quais 5% se flagelam. Não vão aparecer todos, mas um recorte destes 116 grupos. Depende do curador. Eu não quero mostrar o sangue. A insinuação da flagelação é muito mais forte do que a própria flagelação, aqueles cinco minutos antes, quando há aquela tensão. Já presenciei cinco vezes esses rituais de autoflagelação.

Ritual de autoflagelação. Tomar do Jeru-Sergipe. Guy Veloso. 29a Bienal SP

P: E como foram os preparativos para se aproximar desses grupos?

R: Há uma grande pesquisa. Eu passo o ano inteiro pesquisando, tentando descobrir aonde eles existem, telefonando para as secretarias de cultura dos municípios do Brasil inteiro, dos estados das cinco regiões, falando com pesquisadores, historiadores, folcloristas e correndo atrás desse assunto, tentando fazer de tudo para que quando comece a Quaresma, os grupos já estejam me esperando. Além do mais, alguns grupos são secretos. Foi muito difícil descobri-los e conseguir a permissão para fotografar. Então, várias vezes tive que pedir para as pessoas da cidade para que fossem lá na zona rural solicitar que eu fosse até lá, mesmo sem a câmera, porque eu sempre faço o primeiro contato sem a câmera, só para conversar. E se eles gostarem de mim, eles me deixam assistir aos rituais com a câmera. Tive muita sorte, foram 117 grupos e só um não aceitou a minha presença. O meu maior orgulho nesse projeto foi ter sido o primeiro pesquisador a descobrir que há penitentes, que também são chamados de “alimentadores das almas” ou “encomendadores das almas”, nas cinco regiões do Brasil. Isso nunca foi publicado. É a primeira vez, nessa entrevista que isso está sendo falado.

P: Em que momento do projeto você percebeu que poderia procurar em todas as regiões do país?

R: Eu achava que só tinha no Nordeste. Então comecei a viajar por lá. Conversando com historiadores, descobri que existe um grupo aqui no Pará. Aí corri para Oriximiná, fiz entrevistas e fotografei eles durante a penitência. Depois eu descobri que poderia haver no Sudeste. E lá se foram mais seis meses de pesquisa até eu achar vários grupos em Minas Gerais. Quando eu completei essas três regiões do país, eu tive a ideia: será que não existe nas cinco? Isso foi em 2009, eu já tinha duas regiões e já sabia da terceira. Ano passado inteiro fiquei pesquisando como fechar as cinco regiões. Falei com pesquisadores e uma descobriu para mim no Sul, numa comunidade de remanescentes de quilombos a quatro horas de Curitiba, e eu descobri, telefonando para várias cidades de Goiás, que existe outra no Planalto Central. E agora em 2010 passei um mês viajando para essas três regiões. Eu não tinha ideia da quantidade de grupos que já tinha fotografado e a Gláuce Andrade, que é concluinte do curso de Artes e está fazendo TCC sobre este meu trabalho, me obrigou a ir contar. Eu não tinha ideia que já tinha passado de 100. Foi um susto para mim.

P: Sobre o instante da fotografia, diferente daquela “ao acaso” em que se imagina estar no lugar certo, na hora certa, como você planeja para que as fotos sejam feitas, principalmente com relação à esses grupos? R: Eu tento estar no lugar certo, na hora certa, mas para isso tem uma produção atrás. Eu já estudei o grupo. Não existe o acaso. O meu acaso é planejado. Ou ele é muito estudado. Eu chego bem cedo, converso com esses grupos, falando dos penitentes. Faço entrevistas com vídeo, descubro por onde eles vão passar e o horário em que eles vão passar. Às vezes eles saem no final da tarde, aí eu já vejo a questão da luz. Se à noite, tento ver se vai estar iluminada a rua ou não, se vou iluminar com o farol de um carro… é tudo trabalhado. Tento pegar o maior numero de informações possíveis antes de começar a fotografar para criar esses acasos, para estar no momento certo, na hora certa. Mas claro, agradeço que às vezes eu dou sorte, acontecem algumas coisas na hora, coisas mágicas, imprevisíveis. Eu penso também na segurança, mas como fico amigo dos penitentes, eles me protegem. Uma característica muito marcante é que eu viro amigo das pessoas, como que mais um do grupo ou como se eu fosse um espectador constante deles. E eles estão lá me protegendo. Em vários casos, fui convidado a voltar.

P: Há alguma resistência em relação ao uso de equipamento digital ou é preferência estética?

R: Até hoje eu não vi o digital me dar a qualidade do slide. O dia que ele der, por economia, vou trocar. Mas até agora o digital ainda não me convenceu, mas é provável que convença. Não sou radical nesse ponto, o dia em que ele me convencer eu mudo. Sou muito discreto na hora de fotografar, não vou com colete, não vou fantasiado de fotógrafo. Fotografo só com duas máquinas iguais e duas lentes iguais, no máximo. Então muitas vezes eu passo desapercebido. É a minha intenção. Eles acabam esquecendo que eu estou lá.

P: Como experiência humana, como foi passar tanto tempo do lado desses penitentes? R: É um tema muito forte, o mais forte que eu já escolhi. E como eu acabo entrando muito na história, eu acabo sofrendo um pouco, tendo essa ansiedade. E ainda mais que são grupos de pessoas muito pobres, carentes, grande parte não sabe ler ou escrever. Durante um mês por ano, eu acabo entrando nessa vida, de ir para o sertão, vilarejos muito afastados das capitais, nesse tema muito forte que evoca a morte, eles estão fazendo isso por almas que eles acreditam estarem presas no purgatório. Isso afeta meu psique, claro, principalmente quando assisto ritual de autoflagelação. É algo impensável no século XXI, mas acontece no país. E teve uma vez, em 2009, que eu não aguentei. Saí do sertão pra dar um tempo. Me deu uma tristeza imensa. Fui para Recife e fiquei dois dias na praia.

P: E como é estar perto disso tudo? R: Eu sinto a adrenalina do momento, mas reparo que a câmera é uma barreira entre mim e eles. Consigo fotografar até muito de perto, quero que exista um corpo a corpo com o objeto fotografado… eu até me sujo de sangue. Mas emocionalmente aquilo não me envolve, não fico com pena, ou sentindo asco. Assim como eles estão num transe religioso, eu estou num transe fotográfico. No mês seguinte, quando eu vou revelar as fotos, aí sim que bate um sentimento, o sangue, o cheiro, os sons… Tem um detalhe: eu faço questão de fotografar a família deles. Faz parte do projeto. Quero pegar toda a metamorfose, como eles se transformam em penitentes. Como o grupo as vezes é grande – existem alguns com 50 pessoas – eu escolho uma do grupo, geralmente o chefe. Eu entro na vida dessa pessoa. E depois eu mando essas fotos de presente. Como geralmente são pessoas muito carentes, poucos têm fotos de si mesmo. Teve um momento em que começou a acontecer algo muito interessante. Eu comecei a ganhar presentes dos grupos. As mantas, os cordões de São Francisco, as máscaras, as mortalhas… um material etnográfico. E já virou uma coleção com mais de 100 peças da cultura popular religiosa. Pretendo doar para um museu de antropologia. Tem matracas com mais de 100 anos. Esse material vai fazer parte da exposição individual também. Tenho tudo registrado, em vídeo também.

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  1. […] Bienal – Entrevista – Report. (Patrim. Imat. Bahia) – Visita Penit. […]


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