Guy Veloso viu o mundo, ele começava em Belém, no Círio de Nazaré. No Pará estava a matriz da diversidade e, na arte, sua possibilitação de convivência na diversidade.1 Para isso, é necessário transcender a noção de homem bíblico.2 Se para um Pierre Verger turista-fotógrafo-antropólogo urgia deixar Paris, não importa para onde fosse pelos continentes, até mesmo atravessar a Belém amazônica, para Veloso é preciso partir de Belém e a ela voltar sempre.
De toda a fotografia de Belém, até mesmo do Círio de Marcel Gautherot ou dos rituais afro-brasileiros de Pierre Verger, Guy Veloso representou profundamente a interpretação polissêmica integrada inter- -religiosa, reduziu-a a um ato único, o êxtase do alvo e a contorção do tempo da câmera caçadora nos domínios do sagrado. O transe é fusão extática do corpo apropriado e dobrado pela fé, da excitação significante do fotógrafo e da contemplação do espectador. O caudal imagético – que se faz no tempo e nele se condensa – é mantra visual que se repete, reinventa, ora, imbrica, diferencia, aproxima e desdobra entre os meandros do cortejo visual da diferença. Isso é o caudal amazônico de body languages por almas as adas de seus corpos. Já não é o corpo tomado, mas o próprio corpus de imagens que se transfigura em olhar. Daí, a experiência da arte de Veloso ser o encontro com um corpus em êxtase.
Guy Veloso articula encontros de fé.3 A câmera é tenaz na aliança por imagens da arca da diversidade religiosa do Brasil, das diferenças e das convergências. Em tempo de insidiosa intolerância das doutrinas fundamentalistas no Brasil e no mundo, o artista aposta na arte como instância de diálogo e de entendimento para a construção do respeito devido por todos a cada um. Nessa compreensão está seu diagrama de convivência social e um sentido político de igualdade e razão contemporânea para a ideia de religião. Há na obra dele a produção de conhecimento, como no filósofo e historiador das religiões Mircea Eliade, sobre o fenômeno do sagrado e não, simplesmente, a antropologia visual da religião. Eliade hierarquiza as religiões, tais como as “rudimentares”, mas seus estudos sobre o sagrado, a festa e a guerra demarcam estratégias para os ritos, demarcados para originar “gestos importantes e fé bastante para os fazer parecer necessários”, essenciais à vida.4
Na romaria fotometafísica de Guy Veloso, o grande curso público da fé funde-se num essencialismo imagético e unificado pelo transe. Imagens em estado de devir Outro. Na arte de Veloso, o transe é para todas [as religiões], como a histeria é para todos [os sujeitos] na produção de Louise Bourgeois. O igualamento acima de todas as verdades autoproclamadas como absolutas. O psiquiatra Charcot e o filósofo Georges Didi-Huberman demonstraram a mesma origem comum e a fala contorcida do corpo sem escuta. Entre o esconjuro, o descarrego e a autoflagelação – fala-se agora da arte de Veloso – a dependência entre a conversão, o inferno e a fortuna, como ocorre em algumas religiões rentistas por denegação loquaz, conceito freudiano, em que o Não termina como Sim.
A fotografia de Guy Veloso desdobra-se em ângulos de captura da cena de exercício da fé. O conjunto transita entre a interioridade do Ser, o êxtase diante do Outro e o corpo em estado de sublimação. “Pode- -se rezar sem compreender as palavras”, afirma Jacques Derrida, pois, “a oração é um ato. Faz-se ago, mesmo se o significado permaneça opaco.”5 Portanto, se é possível rezar sem entender as palavras, a obra de Veloso é oferta do significante ao espectador, não importa sua religião, para momentos de encontro com o inominado. Contra as primazias e fundamentalismos religiosos, o artista aponta para a etimologia da palavra religião e a ideia de “religar” os homens acima de seus conflitos porque os terrorismos em nome das religiões monoteístas recorrem ao fogo – armas, coquetéis molotov, explosivos, ameaças de Inferno e culpa – para construir sua entropia de Deus. O corpo, nessas imagens de Guy Veloso, explode em notações pela luz prodígio.
1 Paráfrase da grande pintura de Cícero Dias Eu vi o mundo… E ele começava no Recife (1931).
2 REHFELD, Walter I. Tempo e religião. São Paulo: Perspectiva, 1988.
3 O substantivo fé está no singular, evitado o plural que é diviso em muitas possibilidades conflitantes.
4 ELIADE, Mircea. O homem e o sagrado. Sem tradutor. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 161.
5 DERRIDA, Jacques. Body of prayer. Conversa com David Shapiro e Michael Govrin. Kpm Skapich (ed.). Nova York, The Irwin S. Chanin School of Architecture, 2001. p. 59.