Maha Kumbha Mela – O Maior Festival da Terra
Texto e foto © Guy Veloso. Registrado na Biblioteca Nacional (RJ).
© Guy Veloso. Maha Kumbha Mela, Allahabad, Índia, 2001. Slide
Homens-santos saíam nus em procissão com seus corpos cobertos de cinza branca. Centenas de autofalantes ligados em rede transmitiam a todo volume os cânticos e as longas pregações. O curso de dois rios sagrados se encontravam e, neste exato ponto – chamado “Sangam” e famoso em todo o mundo hindu – centenas de milhares de pessoas banhavam-se simultaneamente, como um balé incontrolável, inteligível, invencível. Calcula-se que apenas no dia 24 de janeiro de 2001, 30 milhões de peregrinos aportaram na cidade de Allahabad, norte da Índia, movimento este que chegou ao total de 70 milhões de pessoas ao final do mês indostânico de “Magh” (09 de janeiro a 21 de fevereiro). Esta é a Maha Kumbha Mela, o maior de todos os festivais.
Uma espera de 144 anos. A Índia se mostra em plenitude de 12 em 12 anos. É o Festival de “Purna Kumbha Mela”, quando caravanas de peregrinos partem de todos os pontos do país para a cidade de Allahabad (estado de Uttar Pradesh, 575 quilômetros da capital Nova Deli) a fim de banhar-se no “Sangam”, local onde os rios sagrados Ganges e Yamuna (além do mítico – e invisível – rio Sarasvathi) se unem, fazendo o maior deslocamento populacional do mundo em um só país por causas pacíficas. Acredita-se que este ritual, realizado há séculos naquelas águas, trará bênçãos aos devotos e purgação dos seus pecados. Este ano, o evento foi mais especial ainda, pois se completou um ciclo de 12 festivais, ou seja, 144 anos, a chamada “Maha (grande) Kumbha Mela”.
A tradição. Desde tempos imemoriais o homem busca o sagrado através da peregrinação. Afasta-se temporariamente de seu local de origem, onde ele tem sua morada e seu trabalho, e sai em busca de um lugar especial pela sua história, beleza ou tradição. Onde um deus nasceu, onde um santo está enterrado, um local em que um herói venceu batalhas, ou onde um ritual é sucessivamente executado através dos séculos. Meca, a cidade saudita que todo o muçulmano deve visitar ao menos uma vez na vida; Jerusalém, marco para as três maiores religiões monoteístas do mundo; e Santiago de Compostela, na Espanha, são os exemplos mais conhecidos para nós, ocidentais.
Deuses do bem e do mal. A Kumbha Mela origina-se junto a própria religião hindu, com citações nas milenares escrituras Vedas e Puranas. Segundo a lenda, os demônios roubaram dos deuses um jarro (Kumbh) de cerâmica que guardava o néctar da imortalidade (Amrit), provocando uma batalha celeste entre o bem e o mal que durou 12 dias cósmicos (correspondente a 12 anos terrenos). Os demônios com pressa de fugir, deixaram cair quatro gotas do Amrit em quatro lugares da terra, nas cidades indianas de Hardwar, Nasik, Ujjain e Allahabad. Desde então, estes locais viraram pontos de peregrinação, cujo fluxo de devotos se intensifica em datas especiais. O desfecho da lenda é previsível: ao final do 12o dia, os deuses recuperaram o jarro e venceram os demônios, sendo este o motivo desta ancestral festa.
A chegada. A viagem do Brasil até Allahabad teve tantos embarques e desembarques (Zurick, Nova Delhi, Varanasi – ufa!), que acho melhor nem contar os detalhes. Falar das tediosas horas sentado e da comida do avião? Deixa pra lá! Vou começar, então, minha história a partir do aeroporto de Benares (antigo nome de Varanasi), no qual aportei dois dias depois de meu embarque no Rio de Janeiro. Logo na chegada, hordas de taxistas apertavam-se diante da sala de desembarque e só faltavam carregar literalmente os turistas para seus carros. Fiquei meia hora sentado no lado de dentro, esperando a fúria dos motoristas se acalmar, decidindo qual seria a melhor maneira de chegar a Allahabad, distante 140 quilômetros, acessível somente de carro, ônibus ou trem. A primeira opção venceu, já que me dava a certeza de alcançar aquela cidade em apenas 3 horas. Para quem reclamou que a viagem de avião foi tediosa, a de táxi em alta velocidade por estradas de terra mal sinalizadas, de apenas duas mãos, muitíssimo movimentadas e cheias de curvas, por si só foi uma aventura.
Depois de chegar são e salvo em Allahabad, consegui de última hora por muita sorte uma vaga no melhor hotel da cidade, o Kanha Shyan. Reserva no chão, melhor dizendo, pois todos os quartos deste hotel – e pelo que notei de todos os outros hotéis e pensões da cidade – estavam lotados. Assim, paguei 30 dólares e fiquei junto com mais 70 turistas em colchões deitados no piso acarpetado do luxuoso salão de convenções do Kanha Shyan, improvisado como um grande albergue, com um só banheiro – sem chuveiro – para todos. Nada mal: era a véspera do “Mauni Amavasya”, o dia astrologicamente mais favorável ao banho-ritual de todo o festival, e conseguir um lugar para pernoitar sem ter feito reserva – o meu caso – era uma bênção. Dormi ansioso pelo dia seguinte, o mais sagrado e concorrido Maha Kumbha Mela, o maior festival da terra.
Multidões. Antes do nascer do sol, juntava-me à multidão anônima que singrava pelas ruas amplas de Allahabad naquele dia tão especial, 24 de janeiro de 2001, quando sete planetas do sistema solar estavam perfilados no céu, evento astronômico este que ocorrerá de novo só no ano 2145. Eram duas forças que quase se chocavam: levas de peregrinos chegando a Prayag (antigo nome de Allahabad, antes do imperador muçulmano Akabar tomar estas terras no ano de 1583), e outras tantas centenas partindo ao mesmo tempo, depois de terem se purificado pela água e pela fé. Os que iam embora, cansados, calados, mas com o semblante vívido, como que guardassem para si uma experiência mística. Os que ali chegavam, cantavam alegremente, uns até choravam, e se deslumbravam com a experiência de ver uma cidade grande e seus atrativos de perto – boa parte provinha de vilarejos rurais longínquos. Ouvi falar também de casos de pessoas que aportaram lá depois de meses de caminhada, e que desta mesma forma retornariam a seus lares. Os números oficiais chegaram a exorbitante conta de 30 milhões e meio de pessoas banhadas no confluência dos rios sagrados durante aquele dia, o Mauni Amavasya, considerada esta a maior concentração humana em um só ponto até agora já vista no mundo.
A Grande Feira. Após cruzar a cidade, os recém-chegados descem uma pequena colina e vencem o Rio Ganges através de sete estreitas pontes improvisadas pelo governo com madeira sobre tonéis de ferro, formando para quem observava do alto um espetáculo grandioso, uma dança de milhares de almas, como que regido por mãos divinas. Com o inverno (dezembro a fevereiro), por volta de 80% do amplo leito do Ganges seca com a falta do desgelo dos Himalaias, formando ao centro um grande banco de areia. E lá, sobre esta extensa faixa de terra que meses atrás estava coberta por águas sagradas, uma cidade erguida para durar pouco mais de 50 dias. Algo no mínimo singular: são grandes templos sazonais em madeira e plástico colorido, centenas deles, todos recobertos de bandeiras, símbolos, pinturas e imagens de deuses. Cada um acolhia uma corrente de pensamento hindu (diversas seitas, gurus e escolas filosóficas possuíam ali seu “mandir”). Em torno dos santuários, dezenas de milhares de tendas de lona marrom enfileiradas serviam de hospedaria, como que ali acampasse um exército. Esta “cidade efêmera”, chamada “feira”, ocupava uma área de 12.000 hectares e a população flutuava em torno de um milhão de pessoas a cada noite.
Os homens-santos. Dentro desta grande feira, conviviam todas as castas e sub-castas hindus, em uma harmonia incomum. Milagre dos deuses. Também, o lugar era palco de curiosidades. Algumas delas, exóticas, como grupos de sahadus, os “homens-santos”, ascetas que dedicaram suas vidas à oração e abstinência vindos de todos os rincões da Índia, que perambulam nus e cobertos de cinza (colhidas nos crematórios!), ou então vestindo somente uma velha túnica alaranjada, exibindo suas infinitas tranças na longa cabeleira como um troféu. Eles mendigavam para comer, davam bênçãos a quem os procurasse, e parte deles fumava maconha abertamente em quantidades industriais. Os sahadus saíam em dias especiais (seis vezes durante o festival) em grande procissão para lavar-se nas águas sagradas, com seus passos sendo anunciados por clarins e tambores – por vezes elefantes abriam o cortejo –, acompanhados de uma multidão crente em seus poderes especiais. Na feira havia também outros espetáculos que, mais que curiosos, eram no mínimo, esdrúxulos para a concepção ocidental, como os velhos faquires em suas camas de pregos, além de grupos de “yoguis” em penitência – vi um senhor que conserva o braço direito levantado ininterruptamente por 27 anos, e um rapaz que há 6 anos não se deitava, dormindo todas as noites em pé, escorado em algo.
Sangam, o ponto sagrado. Ao centro, a grande feira com suas milhares de tendas; de um lado, o Ganges, mais caudaloso, de leito escuro; do outro, o Yamuna, de águas tranqüilas, verde-claras: esta era a minha visão do alto das muralhas do grande Forte de Allahabad, que guarda tanto a cidade quanto a união dos rios. Depois de nascerem na Cordilheira dos Himalaias, os dois rios sagrados caminham separados centenas de quilômetros até se fundirem naquele exato ponto, o Sangam. Segundo a lenda, há um terceiro rio, Sarasvathi, não visível aos olhos humanos, que ali também “deságua” seu fluxo etéreo, completando simbolicamente uma analogia aos deuses da trindade hindu, Brahma, Shiva e Vishnu.
Na parte rasa do Sangam, a água chegava no máximo a um metro de profundidade, e sua área ficava ampla o suficiente (4 quilômetros quadrados) para receber ao mesmo tempo alguns milhões de pessoas para o banho-ritual. As mulheres mergulhavam com toda a roupa, trajando seus melhores “saaris”, enquanto os homens imergiam somente com a roupa de baixo, depois de terem grande parte deles raspado os seus cabelos. Crianças muito pequenas, a contragosto, eram também mergulhadas naquelas águas frias. Muitos também a ingeriam ou com ela escovavam os dentes. No Sangam, os fiéis depositavam as suas oferendas – flores, moedas, arroz, leite, frutas – e, antes de partir, compravam garrafas de plástico a fim de levar para casa, como uma relíquia, um pouco daquela água sagrada. Tudo sob a sob a vista do Deus Shiva, que a tudo e a todos observa de seu trono nos Montes Himalaias – segundo a tradição, o Ganges nada mais é de que os cabelos de Shiva descendo das montanhas.
Quando a terra tremeu. Receando desastres iguais aos que ocorreram em eventos anteriores – em 1950 mais de 300 peregrinos morreram afogados no Ganges após um distúrbio – tão como a constante ameaça de ataques terroristas de extremistas muçulmanos desagradados com a política adotada em relação ao território da Cashemira, o Governo indiano colocou um enorme contingente do exército e da polícia nas ruas, todos trabalhando na proteção e organização do evento. No meu hotel, por exemplo, havia um homem com espingarda montando guarda em cada uma das portas de entrada. Os deuses ajudaram, e nos sete dias que passei na Maha Kumbha Mela, nenhum incidente sério ocorreu. Mas, parecia que estes mesmos deuses haviam virado as costas para uma província muito distante dali. Em Gujarat, extremo oeste da Índia, um violento terremoto arrasou em poucos minutos cidades inteiras. Como eu estava bem longe do epicentro, somente tomei um bom susto – em Allahabad o tremor foi sentido, mas sem causar dano algum. Duro, foi ouvir as notícias que chegavam a todos os instantes sobre este grande desastre, que teria matado 50 mil pessoas naquele país que ora me recebia. Pela noite, angustiado depois de ver o noticiário da CNN no hotel com cenas bizarras da tragédia, duvidei da existência dos deuses. Cheguei a pensar que aquelas milhares e milhares de oferendas e orações jogadas ao rio tinham sido em vão.
Sua Santidade. Faltavam dois dias para eu partir, e finalmente tinha conseguido um quarto no hotel. Eu merecia! Enquanto tomava o café, lendo em inglês o “Hindustian Times”, descobri que naquele dia estaria fazendo uma visita oficial a Allahabad nada menos que Sua Santidade, o 14o Dalai Lama, chefe de Estado em exílio do Tibet. Nem pensei duas fazes para terminar ali o desjejum e sair atrás deste grande líder espiritual budista. Vaguei por horas dentro da feira, correndo atrás de informações desencontradas, até por fim achá-lo dando uma palestra em um grande templo de lona. Faltava então só passar pela barreira do exército indiano, pela barreira dos assessores e seguranças de Sua Santidade, pelas centenas de ocidentais que assistiam o colóquio, e pela última e mais difícil barreira, a dos fotógrafos que se acotovelavam na frente do palco. Tive sorte, e cheguei depois de muito trabalho a dois metros de Sua Santidade, tendo ainda tempo de tomar algumas imagens desta grande figura, Prêmio Nobel da Paz em 1989. Ele foi embora poucos minutos depois, não sem antes dar uma mensagem de paz entre os homens e de tolerância entre as religiões – pelo simples fato dele, o maior líder budista vivo, estar presenteem uma festa hindu, era prova de que aquilo não era um sonho impossível. Saí de lá emocionado, feliz por estar naquele lugar longínquo, uma feira medieval quase que perdida no tempo, voltando a acreditar nos deuses – os mesmo que reneguei noite anterior ao ver o noticiário da Tv.
As memórias. A viagem estava acabando. Dia seguinte, pegaria bem cedo o primeiro trem para Varanasi, e já era hora de pensar em arrumar as malas e as memórias para a longa jornada de retorno ao Brasil. Era meu último dia inteiro na Grande Feira, e saí do hotel logo depois do sol dar as caras. Só que desta vez, não levei as lentes, câmeras, bloco de notas ou filmes. Queria caminhar sem obrigação de registrar nada. Ou melhor, registrava sim, em minha memória, estes meus últimos momentos na Maha Kumbha Mela. Afinal, uma festa igual só daqui a 144 anos.
Cruzei a pé Allahabad, para depois de seis quilômetros chegar ao Sangam, junto a enorme massa que lavava seus corpos e almas. Eu não era um peregrino, de certo, mas também, não era mais um mero turista curioso por uma feira exótica. Via que depois destes dias, me sentia um pouco que fazendo parte daquela festa, daquele mundo tão diferente do meu.
Os incensos plantados na areia, as carradas de flores jogadas na água, a fumaça das fogueiras que aqueciam famílias inteiras e a fragrância das comidas muitíssimo condimentadas vendidas pelos ambulantes, inundavam de odores díspares os meus pulmões. Ao final da tarde, quando a temperatura começou a cair, apertei meus olhos como que tentando captar ao máximo aquelas últimas imagens. A névoa – resultado da combustão simultânea de milhares de fogueiras – pairava sobre toda a feira proporcionando um espetáculo dramático, onde se podia olhar diretamente o sol duas horas antes de seu crepúsculo. As cores brincavam em minhas retinas. Ah, as cores da Índia, naquele lugar sagrado, pareciam mais pujantes ainda; carregadas de uma aura mística, ritualística, que só naquele país distante se pode observar com tanta plenitude.
Originalmente publicado na Revista Horizonte Geográfico em 2001. Texto © Guy Veloso. registrado na Biblioteca Nacional (RJ).
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