Publicado por: guyveloso | 9 de abril de 2019

Crítica de Paulo Herkenhoff

Guy Veloso viu o mundo, ele começava em Belém, no Círio de Nazaré. No Pará estava a matriz da diversidade e, na arte, sua possibilitação de convivência na diversidade.1 Para isso, é necessário transcender a noção de homem bíblico.2 Se para um Pierre Verger turista-fotógrafo-antropólogo urgia deixar Paris, não importa para onde fosse pelos continentes, até mesmo atravessar a Belém amazônica, para Veloso é preciso partir de Belém e a ela voltar sempre.

Círio de Nazaré, Belém-PA / Cirio procession, Belém (Amazon), Br

Círio de Nazaré, 2010, slide. © Guy Veloso

De toda a fotografia de Belém, até mesmo do Círio de Marcel Gautherot ou dos rituais afro-brasileiros de Pierre Verger, Guy Veloso representou profundamente a interpretação polissêmica integrada inter- -religiosa, reduziu-a a um ato único, o êxtase do alvo e a contorção do tempo da câmera caçadora nos domínios do sagrado. O transe é fusão extática do corpo apropriado e dobrado pela fé, da excitação significante do fotógrafo e da contemplação do espectador. O caudal imagético – que se faz no tempo e nele se condensa – é mantra visual que se repete, reinventa, ora, imbrica, diferencia, aproxima e desdobra entre os meandros do cortejo visual da diferença. Isso é o caudal amazônico de body languages por almas as adas de seus corpos. Já não é o corpo tomado, mas o próprio corpus de imagens que se transfigura em olhar. Daí, a experiência da arte de Veloso ser o encontro com um corpus em êxtase.

Guy Veloso articula encontros de fé.3 A câmera é tenaz na aliança por imagens da arca da diversidade religiosa do Brasil, das diferenças e das convergências. Em tempo de insidiosa intolerância das doutrinas fundamentalistas no Brasil e no mundo, o artista aposta na arte como instância de diálogo e de entendimento para a construção do respeito devido por todos a cada um. Nessa compreensão está seu diagrama de convivência social e um sentido político de igualdade e razão contemporânea para a ideia de religião. Há na obra dele a produção de conhecimento, como no filósofo e historiador das religiões Mircea Eliade, sobre o fenômeno do sagrado e não, simplesmente, a antropologia visual da religião. Eliade hierarquiza as religiões, tais como as “rudimentares”, mas seus estudos sobre o sagrado, a festa e a guerra demarcam estratégias para os ritos, demarcados para originar “gestos importantes e fé bastante para os fazer parecer necessários”, essenciais à vida.4

Na romaria fotometafísica de Guy Veloso, o grande curso público da fé funde-se num essencialismo imagético e unificado pelo transe. Imagens em estado de devir Outro. Na arte de Veloso, o transe é para todas [as religiões], como a histeria é para todos [os sujeitos] na produção de Louise Bourgeois. O igualamento acima de todas as verdades autoproclamadas como absolutas. O psiquiatra Charcot e o filósofo Georges Didi-Huberman demonstraram a mesma origem comum e a fala contorcida do corpo sem escuta. Entre o esconjuro, o descarrego e a autoflagelação – fala-se agora da arte de Veloso – a dependência entre a conversão, o inferno e a fortuna, como ocorre em algumas religiões rentistas por denegação loquaz, conceito freudiano, em que o Não termina como Sim.

A fotografia de Guy Veloso desdobra-se em ângulos de captura da cena de exercício da fé. O conjunto transita entre a interioridade do Ser, o êxtase diante do Outro e o corpo em estado de sublimação. “Pode- -se rezar sem compreender as palavras”, afirma Jacques Derrida, pois, “a oração é um ato. Faz-se ago, mesmo se o significado permaneça opaco.”5

Portanto, se é possível rezar sem entender as palavras, a obra de Veloso é oferta do significante ao espectador, não importa sua religião, para momentos de encontro com o inominado. Contra as primazias e fundamentalismos religiosos, o artista aponta para a etimologia da palavra religião e a ideia de “religar” os homens acima de seus conflitos porque os terrorismos em nome das religiões monoteístas recorrem ao fogo – armas, coquetéis molotov, explosivos, ameaças de Inferno e culpa – para construir sua entropia de Deus. O corpo, nessas imagens de Guy Veloso, explode em notações pela luz prodígio.

Paulo Herkenhoff. Catálogo da exposição Pororoca, MAR-Museu de Arte do Rio, 2014.

1 Paráfrase da grande pintura de Cícero Dias Eu vi o mundo… E ele começava no Recife (1931).
2 REHFELD, Walter I. Tempo e religião. São Paulo: Perspectiva, 1988.
3 O substantivo fé está no singular, evitado o plural que é diviso em muitas possibilidades conflitantes.
4 ELIADE, Mircea. O homem e o sagrado. Sem tradutor. Lisboa: Edições 70, 1988. p. 161.
5 DERRIDA, Jacques. Body of prayer. Conversa com David Shapiro e Michael Govrin. Kpm Skapich (ed.). Nova York, The Irwin S. Chanin School of Architecture, 2001. p. 59.

Publicidade

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Categorias

%d blogueiros gostam disto: