Publicado por: guyveloso | 3 de fevereiro de 2022

Penitentes. Autoflagelação / Penitents. Self-flagellation

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©Guy Veloso. Ritual de autoflagelação. Bahia, 2014 / Self-flagellation ritual, Bahia-Brazil,2014.



Texto de Guilherme Ghisoni da Silva:



A descoberta do que nos é próprio

Qual sentido a religiosidade pode ainda ter em um mundo no qual os filósofos já declararam a superação de deus como o fundamento da realidade e os psicólogos as patologias que acometem as superstições? Uma possível resposta, que nos permitiria salvaguardar a religiosidade, é dizer que há várias outras visões de mundo – para além das dos filósofos e psicólogos.  São dessas outras visões de mundo que somos lembrados ao olharmos as fotografias de Guy Veloso. Outra linha de resposta é dizer que há várias formas de religiosidade. Neste caso, a função das fotografias do artista seria nos mostrar os caminhos da religiosidade genuína. Haveria um núcleo indizível no interior das religiões, que as une em vista de um único fim: o religamento do indivíduo com algo para além da linguagem, da ciência, da razão. Os abusos e usurpações da religião seriam frutos da perda da religiosidade genuína. Os filósofos e psicólogos estariam limitados à crítica desses descaminhos.

Nas fotografias de Guy Veloso, o religamento com o divino é possível por intermédio da exata união entre vida e arte. A fotografia, desde seu nascimento no séc. XIX, muito se prestou ao olhar voyeurista, que retrata os fatos como se os visse de fora – sem deles fazer parte. A fotografia possibilitou dar forma fixa ao prazer de olhar a realidade sem nela adentrar. Porém, este é o oposto do que se manifesta no trabalho fotográfico de Guy Veloso. O artista é um Penitente iniciado nos rituais que fotografa. Ele é aceito como um Penitente pelos próprios Penitentes. Poucos olhos tiveram acesso aos rituais que testemunhou – muitos deles secretos e até então nunca retratados por um fotógrafo. Este ingresso foi conquistado lentamente, ao longo de mais de 17 anos de intensa pesquisa e negociação entre as partes. Foram inúmeras viagens e contatos com mais de 200 grupos, em 13 estados do país. O ápice deste profundo envolvimento com o mundo dos Penitentes foi sua inclusão, como discípulo, em confraria centenária, na Bahia. Aos poucos tornou-se aquilo que retrata, sendo esta parte da razão da extraordinária força de suas fotos. Guy olha para um mundo cuja existência compreende como sua. Ele sabe o que se passa nos recônditos mistérios do êxtase religioso.

De um ponto de vista estético, a sua presença no mundo que retrata se revela de forma sutil em um recurso visual que usa com total maestria: os borrados dos movimentos, decorrentes das longas exposições. Os rituais fotografados pelo artista geralmente ocorrem na Quaresma e Semana Santa, sempre na calada da noite. Como muito raramente usa o flash, que congelaria e fatiaria as ações no interior da noite escura, Guy é forçado a uma longa abertura de diafragma, apreendendo lentamente a luz; como quem sorve aos poucos os instantes da vida que o circunda. E sem o uso do tripé, que o transformaria em um observador imóvel, percebemos a sua presença na maneira como a própria câmera se move durante as longas exposições. Estes borrados de seu movimento são os indícios fotográficos de que o artista está presente no mesmo espaço e no mesmo tempo que as pessoas por ele retratadas.

Em uma perspectiva mais geral, a presença de Guy Veloso também se revela no conjunto de sua obra. Todas as suas fotos são inegavelmente atos de um só artista. Neste caso, a unidade estética não se encontra em um traço visual distintivo que se repete. É uma unidade viva que resulta da maneira como olha para o mundo sempre com igual força e profundidade. Ao possuir o ímpeto para alcançar o extraordinário, paixões díspares e antagônicas podem ser contempladas como diferentes facetas daquilo que nos torna humano. Dessa forma, o olhar de Guy Veloso consegue se transmutar em drama, violência, sensualidade, humor e, ainda assim, encontrar continuamente a religiosidade que habita as ações daqueles que retrata.

Mas suas imagens são apenas a parcela visível de um enorme mundo invisível que as fundamenta. Na obra de Guy Veloso há uma ímpar união entre antropologia, religiosidade e arte – a trindade de perspectivas que em cada uma de suas fotografias se torna uma. Sua pesquisa transborda imagem afora e seu conhecimento do mundo dos Penitentes confere ao seu testemunho o valor de relato antropológico. A descoberta do fotógrafo, de que há Recomendadores das Almas nas cinco regiões do país, é uma prova de importante valor acadêmico, de que uma silenciosa unidade nos constitui como nação. Essa descoberta abre uma nova porta ao cerne de nossa cultura, que agora pode ser percorrida por antropólogos e sociólogos. O valor acadêmico de sua pesquisa também se manifesta no registro das sutis diferenças que dão identidade a cada um dos grupos que fotografa. O sincretismo molda as diferentes práticas dos Penitentes, fundindo de forma singular esse ritual religioso de origem medieval europeia à cultura local das cinco regiões do Brasil.

Os Penitentes cantam, muitas vezes ao som de matracas, em encruzilhadas, pelas almas no Purgatório. Guy é um guardião das suas vestimentas, ritos e cantos. Ao longo dos anos, o fotógrafo colecionou mantos, matracas e demais peças originais. Realizou também entrevistas em vídeo e registros sonoros; que constituem atualmente o maior acervo deste tema no país. Sem essa documentação, uma fascinante parcela do mundo seria devorada pela passagem do tempo.

Sua importância como pesquisador transcende os limites do território nacional e faz do artista um porta-voz de nossa cultura. Os Penitentes remontam à Europa medieval. A era das grandes navegações dispersou os seus ritos nas terras conquistadas pela coroa espanhola, na América Central e do Norte, e nas terras portuguesas do sul. Por mais de cinco séculos, práticas religiosas nascidas em mesmo solo mantiveram-se desirmanadas em hemisférios opostos do nosso continente. Em 2017, ao participar da Biennial of the Americas, nos Estados Unidos, as fotografias de Guy possibilitaram o religamento histórico dos Penitentes do Brasil português aos rituais de língua espanhola dos Penitentes norte-americanos do Novo México.

Mas é a espiritualidade de Guy Veloso que permite a profunda união entre arte e religião. Não é possível distinguir a força imaterial da religiosidade expressa nas ações e cenas retratadas da força imaterial da religiosidade do próprio fotógrafo. É a ascese espiritual do indivíduo retratado que dá força expressiva às imagens ou é a ascese espiritual do próprio fotógrafo? É na união dessa dupla religiosidade, do que é visto e de quem vê, que a documentação dos rituais religiosos alcança o estatuto de arte em Guy Veloso. É por vermos o mundo através de um olhar genuinamente espiritual que vultos na noite, encobertos em tecidos translúcidos, se tornam a porta de entrada para a dimensão inefável do divino. É a espiritualidade do artista que lhe permite transformar várias imagens sobrepostas em diferentes vozes que em uníssono alcançam os mistérios da teologia.

Nos mistérios da religião, as dicotomias da linguagem são superadas. Assim, encarnada em imagens, a religiosidade permite a contemplação da unidade dos opostos. Nas fotografias do artista, o êxtase religioso se torna um ápice no qual não há mais a separação entre prazer e dor, entre finito e infinito. Há apenas o indizível absurdo da condição humana.

A contribuição de sua obra para nossa cultura vem em perfeita hora. Pensamo-nos divididos entre um passado que não mais nos pertence e um futuro disforme, que infelizmente destruímos na exata medida que o tentamos construir. Guy nos lembra que esse passado ainda nos é próprio. Suas fotografias não cortam o tempo como se nos dessem a contemplação instantânea do que se passa de forma efêmera em nossa época. Suas fotografias fatiam o tempo de forma longitudinal, unindo o século XXI ao Brasil colonial do século XVII. Enquanto imagens, poderiam ser visões de qualquer momento deste longo percurso. Através de suas fotos descobrimos que os ritos de outros séculos ainda estão vivos e nos constituem.

O Brasil se fragmenta em diferentes culturas nas muitas geografias de suas regiões. Na fotografia de Guy Veloso, encontramos a unidade das diásporas que nos criam como nação. A religiosidade costura todas as suas imagens, assim como os recônditos cantos do emaranhado de retalhos que nos forma. Não devemos negar a cultura que temos, mas olhá-la nos olhos, como faz o fotógrafo, e compreender que o que lá é visto somos nós mesmos. Olhemos para nós mesmos através das fotografias de Guy Veloso.

Guilherme Ghisoni da Silva

06 de junho de 2019.

Professor Doutor da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás. Possui graduação e mestrado pela Universidade Federal do Paraná e doutorado pela Universidade Federal de São Carlos.



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